O nosso papel não é fazer a revolução - Nuno Markl, humorista

Provavelmente já fez piadas sobre tudo e talvez por isso não tenha dúvidas de que "o futebol é um tema mais incendiário do que a religião. Já a crise é uma matéria-prima mais pacífica: afinal, a atualidade dá motivos de sobra. É como bater no ceguinho, resume ao briefing Nuno Markl, autor de "O homem que mordeu o cão" e um dos artífices da escalada da Comercial nas audiências. Afirma, contudo, que o papel dos humoristas não é fazer a revolução.
Briefing ' O Nuno Markl é uma marca?
Nuno Markl ' Não fiz nada de consciente para que Markl ou Nuno Markl seja uma marca. O que acontece é que, como não sou ator, só sei fazer esta personagem que sou eu próprio. E o facto de me ter usado como protagonista de textos na rádio e na televisão é capaz de ter feito com que, além do Nuno Markl real, tenha aparecido uma versão um bocado exagerada, um "boneco". E é possível que, sem eu ter dado por isso, esse "boneco" se tenha tornado uma marca.
A altura em que me apercebi disso realmente foi quando fiz uma campanha para a TMN, construída à volta da minha personagem. Não tive nada a ver com o texto, mas, quando o li, parecia escrito por mim. As pessoas que me conhecem daquilo que eu conto na rádio e na televisão são capazes de criar uma ficção à volta desta personagem. Mas não foi nada planeado e, para mim, ainda é uma coisa surreal.
Briefing ' Qualquer marca tem atributos. Quais diria que são os da marca Markl?
NM ' Os convites para fazer publicidade começaram a aparecer depois de eu ter voltado para a Rádio Comercial. Quando regressei com a Caderneta de Cromos, muita gente não se apercebeu que eu tinha estado na Antena 3, pensavam que tinha estado cinco anos desaparecido. Eu prezo muito o trabalho que fiz na Antena 3, gostava muito da liberdade que me foi dada lá, mas de percebi que houve como que uma redescoberta das minhas coisas. Foi nessa altura que passei a ser mais chamado para fazer publicidade.
Lembro-me de que, quando estava na Antena 3, alguém ter feito um comentário na net a dizer qualquer coisa como "ninguém te vai chamar para fazeres publicidade, não tens nada que interesse às pessoas para ser vendido, não és bonito, criaste uma personagem super deprimente". E eu pensei que aquela pessoa era capaz de ter razão. Ironicamente, a publicidade que vim a fazer baseava-se nesses "atributos". Lembro-me de falar com uma das marcas, a Philips, e diziam-me que a razão por que me tinham escolhido para aquela campanha em vez de um tipo bonito e garboso era precisamente porque queriam chegar a pessoas como eu, que assumem as suas falhas.
Fiz outra coisa para a Gillette, que também se baseou nessa ideia de chegar ao homem comum. Fizeram uma campanha comigo, mas a seguir fizeram outra com o Adrien Brody. Fiquei honrado...
Para mim, tudo é ainda um bocado bizarro. Eu daria razão a esse anónimo, mas talvez entretanto o paradigma da publicidade tenha mudado.
Briefing ' Como é que gere a sua presença na publicidade?
NM ' Houve uma altura em que eram muitos ao mesmo tempo e eu e as pessoas que trabalham comigo gerimos um bocado mal. Aconteceu estar em duas campanhas ao mesmo tempo, uma para a Gillette e outra para a Danone. Não fazia sentido. Possivelmente ia acabar a fazer a barba com iogurte... Os dois universos estavam misturados e foi de facto mal calculado.
Geralmente, eu avalio se faz sentido e, acima de tudo, se vai ter graça. É o vício da profissão: perceber se, ao entrar numa campanha, consigo ter algum controlo criativo sem me intrometer no trabalho dos criativos que são pagos para isso e, ao mesmo tempo, ver se não vai desvirtuar a imagem que as pessoas têm de mim, no fundo, a marca. Tudo o que tenho feito tem sido com base nessa ideia - campanhas nas quais posso dar alguma coisa de mim.
Tenho recebido variadíssimas abordagens de várias marcas que querem usar o meu mural de Facebook para passar mensagens publicitárias e a isso digo sempre que não. Ou bem que estão inseridas numa grande campanha com vídeos, que até gosto de mostrar, ou então colocar posts a dizer que um produto é fixe, por exemplo, é enganar as pessoas. Não gosto. Chateia-me trair dessa
forma quem me acompanha há tantos anos. Tenho imenso cuidado com o que publico no Facebook e mesmo quando ponho algum spot tenho sempre o cuidado de avisar "atenção, isto é publicidade". Percebo que, para uma marca, seria muito mais eficaz se eu simplesmente metesse uma imagem lá pelo meio, mas eu tenho muito cuidado com o uso do Facebook. Não gostaria de estar num Facebook que seguisse há anos e perceber que me estavam a tentar impingir alguma coisa. Não vale tudo.
Briefing ' Para fazer um anúncio, precisa de se identificar com a marca?
NM ' Tenho alguns critérios. Quando fiz a campanha da Gillette, alguém me deixou uma mensagem no Facebook a dizer "parece impossível, tu, que defendes os direitos dos animais, vais trabalhar com uma empresa que pratica testes em animais". Ora, eu não posso com isso, acho que já não faz sentido. Ainda posso compreender na medicina, para salvar vidas, mas em produtos para as pessoas ficarem mais bonitas é tenebroso. O que fiz foi marcar uma reunião com a Gillette e questioná-los. Disseram-me que já tinham feito testes em animais e que tinham um programa para abandonar essa prática, deram-me um dossiê gigantesco com documentos e eu confiei neles. Espero não me ter enganado. Falei sobre isso no Facebook. É um dos cuidados que tenho.
Briefing ' E o uso de humoristas na publicidade, é moda ou o humor é mesmo eficaz?
NM ' O humor é eficaz em qualquer situação para comunicar o que quer que seja. Lembro-me sempre do filme do Stanley Kubrik "Dr. Strangelove", com o Peter Sellers, que fez mais pela paz do que um senhor atrás de um palanque a falar sobre o horror da guerra atómica.
Há um certo fenómeno de moda que se instalou em Portugal desde o início dos anos 2000, quando se deu aquele boom do stand up com o "Levanta-te e Ri" e também com "O homem que mordeu o cão". Acho que ficou enraizada a ideia de que a comédia é uma coisa de que o País precisa. E as marcas juntam-se a esta ideia. É compreensível.
Briefing ' Em tempo de crise espera-se mais dos humoristas? Não é um grande fardo?
NM ' Retiro muito isso do meu Facebook. Quando eu faço uma piada inócua, sobre uma coisa qualquer, há muitas pessoas que comentam que eu devia era falar sobre o País. Põe-se uma responsabilidade muito grande sobre os humoristas. Estamos aqui para comentar - e é verdade que a atualidade tem muitas coisas ridículas que apetece comentar - mas não cabe aos humoristas fazer a revolução. Não é bem esse o nosso papel.
Há anos que se fala de crise, desde o "Sabadabadu", "O Tal Canal", o "Hermanias". Sempre houve piadas sobre a crise. Se calhar nunca tivemos uma crise tão forte como esta, mas a crise alimenta o humor há muito tempo. Essa predisposição para o humor poder ter a ver com a ideia de fuga, de exorcismo da situação trágica do País. Acho que esta situação merece ser gozada e já fiz algumas piadas, mas o humor político não é a minha praia. Gosto muito mais do humor de observação das pequenas coisas da vida, que se repetem gerações fora, e tentar descobrir nisso alguns ângulos inexplorados é um desafio muito interessante
Briefing ' Fazer humor com a crise não é demasiado fácil?
NM ' Não precisamos de mexer muito na atualidade. Podemos fazer coisas, mas é quase como bater no ceguinho. Só que é um ceguinho em que apetece bater...
Briefing ' Qual é o tema mais difícil de trabalhar?
NM ' Se me perguntasse há uns anos, diria que era a religião. Participei com o Nuno Artur Silva no texto da "Última Ceia", do Herman, e lembro-me do sururu que se gerou. Se hoje fizéssemos aquele sketch não ia acontecer nada. Há tantos estímulos que já seria suave, não haveria ali nada que pudesse chocar por aí além...
Hoje em dia o tema mais complicado de trabalhar em humor é o futebol. De certa forma substituiu várias coisas na vida das pessoas e, possivelmente, até a religião. O futebol tornou-se ele próprio uma religião com fundamentalismo selvagem. Desde que comecei a trabalhar nesta área sempre escrevemos piadas sobre futebol, mas nunca como hoje geraram a fúria, muitas vezes assustadora, que algumas piadas geram. Estamos a falar de ameaças de pancada ou de morte mesmo. Pode ser só garganta, mas...
O futebol é um tema mais incendiário do que a religião. Podia fazer-se uma piada sobre Fátima que não iria ter o mesmo impacto que uma piada sobre o Benfica, o Sporting ou o Porto.
Briefing ' Voltando à marca Markl. Entre a rádio, a televisão e a publicidade, não há risco de desgaste?
NM ' Há esse risco e estou ansioso por chegar a uma situação em que possa largar alguma das coisas. O ideal era largar tudo por uns tempos e fazer só rádio, porque é o que eu gosto verdadeiramente de fazer. Não me importo que caia tudo à minha volta desde que continue a fazer rádio, porque tenho, de facto, essa paixão. O lugar comum do bichinho da rádio é uma coisa muito forte.
O que me agrada na rádio é a simplicidade e a maneira direta de comunicação, em que, basicamente, estamos a contar uma história e o ouvinte está a construi-la na cabeça dele. É o ouvinte que trata dos efeitos especiais, do guarda-roupa...
Briefing ' Com uma presença diária na rádio há tantos anos, como se reinventa?
NM ' A ideia é tentar surpreender todos os dias. Quando voltei para a Comercial fiquei a pensar no que podia fazer em rádio que já não tivesse feito. E, de facto, já fiz muita coisa, trabalho nisto desde as rádios-piratas. Já fiz rubricas, crónicas, radionovelas, históricas bizarras, sketches... Mas algo como a "Caderneta de Cromos" ainda não tinha ouvido em lado nenhum. Reunir todas as peças da minha infância e juventude, catalogá-las, fazer quase um trabalho de arqueologia e de museu.
Depois da "caderneta" fiquei sem ideia de para onde ir a seguir. O que posso inventar mais? E inventei outra rubrica, a "Grandiosa História Universal das Traquitanas", que era à volta de sketches, era muito alternativa e não pegou por aí além. A única solução era mesmo back to basics, ou seja, "O homem que mordeu o cão". É tão direto e tão baseado naquilo que eu acho que deve ser a rádio, que é contar histórias, por oposição áquilo que se achava que a rádio devia ser há uns anos, um gira-discos. Hoje em dia, as pessoas ouvem a música que querem quando querem e a rádio te, de lhes dar algo mais.
Quando me cansar d' "O homem que mordeu o cão" já não tenho mais nada para fazer em rádio... é complicado quando se trabalha há tantos anos e todos os dias. O António Sala fez o "Despertar" durante anos e anos e anos. Ainda me faltam uns quantos anos para
chegar aí.
Briefing ' O paradigma da rádio mudou, de facto. De tal forma que hoje as audiências se disputam acerrimamente. E as duas principais rádios têm o seu humorista de serviço...
NM ' O humor, ainda antes do famoso boom dos anos 2000, sempre foi uma componente muito forte da rádio, sobretudo de manhã. Agora, tanto a Comercial com a RFM têm o seu humorista de óculos, a Comercial tem-me a mim e eles têm o Nilton. Somos muitas vezes confundidos na rua e chegámos a um pacto em que já não corrigimos as pessoas. Vem desde o "Levanta-te e Ri". Eu nunca fui ao programa, mas lembro-me de andar pela rua e haver pessoas que me diziam "Ganda Nilton, vi-te no Levanta-te e Ri".
O Nilton conta uma história muito boa. Um dia foi fazer um salto de paraquedas e, no final, a equipa estava a despedir-se e um deles disse "Foi um gosto ter-te cá, ganda Marco". E outro corrigiu "Marco? Estás maluco? É o Markl". Ele corrigiu não no sentido de dizer que era o Nilton, mas o nome. Por isso, é que chegámos a este pacto em que os comediantes de óculos assumem para as pessoas que são o outro, caso haja confusão.
Briefing ' Diria que o seu regresso à Comercial contribuiu para a subida das audiências?
NM ' Acho que, estatisticamente, começou com a "Caderneta de cromos". Saindo da Antena 3 para regressar à Comercial, sabia que tinha de voltar com uma coisa que falasse para um número maior de pessoas, embora não traindo aquilo em que acredito que deve ser o meu humor. Mas não pensei que fosse tão rápido. Criámos o Facebook da "caderneta" numa sexta-feira, o programa ia começar na segunda e durante aquele fim-de-semana formou-se uma comunidade enorme, instantânea, só pelo prazer de saberem que ia haver uma rubrica que colecionava coisas dos anos 70 e 80. Então começou a subida da Comercial. Depois, o Ricardo Araújo Pereira, com a "Mixórdia de temáticas", deu o pontapé que faltava e lá fomos nós.